Coronavírus: o correto manuseio e descarte de EPIs contaminados

Texto: Ed Bastos, Paulo Harkot, Marlise Araújo
Revisão: Regina do Couto
Imagens: Ed Bastos, Tai Jennewein (contribuição de Ricardo Portugal)

O correto descarte de resíduos sólidos é uma preocupação constante entre aqueles que trabalham e cuidam do ambiente, seja em terra ou no mar. É sabido que, se não adequadamente acondicionados e recolhidos, resíduos sólidos  contaminam solos, ar e mananciais, podendo chegar aos corpos hídricos correntes até alcançarem espelhos d’água como lagos e o oceano.

A partir do momento em que chegam ao ambiente, além da contaminação do meio, interações com a biota local são inevitáveis e acontecem de diferentes formas e níveis, podendo inclusive incorporar resíduos tóxicos à cadeia trófica.

Com o advento da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, vírus responsável pela CoViD-19, surgiu uma nova preocupação. É preciso entender como lidar com o descarte dos equipamentos de proteção individual (EPIs), sobretudo das máscaras, uma vez que o tempo de permanência do vírus íntegro nas diversas superfícies e materiais pode variar1.

Segundo um trabalho de revisão publicado por Kampf et al2, os coronavírus humanos, incluindo o SARS-CoV-2, podem permanecer infecciosos em superfícies inanimadas por até  nove  dias. Assim, é fundamental o cuidado com o descarte de materiais que podem estar contaminados por este vírus.

Pensando nisto, procuramos criar uma base referencial para provocar discussões mais profundas e urgentes, uma vez que há a necessidade de ajudar a combater a curva de contaminação e evitar a morte desnecessária de pessoas por causa dos iminentes ou já existentes colapsos dos sistemas de saúde em todo o mundo. Neste documento serão considerados apenas os descartes ditos corretos dos resíduos. O descarte irregular, não menos importante que o regular, deverá ser discutido em uma próxima oportunidade.

Como esse vírus entra no nosso corpo?

Para melhor entendermos os métodos de desinfecção de materiais não hospitalares é necessário considerar a estrutura do vírus e o que buscamos inviabilizar. Como todos os vírus, o corona humano tem vias preferenciais de entrada no corpo: mucosas orais, respiratórias e oculares (boca, nariz e olhos). Uma vez que as partículas virais atinjam esses locais, estruturas de glicoproteínas chamadas espículas se aderem aos receptores das células humanas, possibilitando iniciar o processo infeccioso (fig 1). As vias respiratórias superiores (nariz, faringe e laringe) são as vias preferenciais para a reprodução desse vírus.

Figura 1: Espícula se acopla ao receptor da célula humana permitindo a entrada da partícula viral nos tecidos humanos

Cada partícula viral é composta por uma membrana lipoproteica  constituída por um conjunto de glicoproteínas – as espículas, que se assemelham à forma de uma coroa, daí o nome coronavírus. No interior da membrana fica o material genético – o RNA, que carrega as informações para sua replicação e, consequentemente, os sintomas da patologia. O RNA fica intimamente conectado à estruturas proteicas, formando o nucleocapsídeo (fig 2). 

Figura 2 – Esquema da estrutura do SARS_CoV_2

Se a camada lipídica da membrana for destruída – por agentes mecânicos e/ou químicos, o vírus perde sua capacidade infectante pela desnaturação das espículas, e não consegue mais se encaixar nos receptores humanos. Este é o alvo da desinfecção das superfícies, utensílios e mãos, principalmente.

O que podemos fazer para evitar a contaminação pelo SARS-CoV-2?

A partir das formas mais indicadas e acessíveis de inativação do SARS-CoV-2, sugerimos, além das medidas de isolamento social e proteção individual amplamente divulgadas junto aos cidadãos, as abaixo listadas:

  • Higienizar as mãos com álcool gel 70%; friccionando por 20 segundos
  • Higienizar as mãos com água e sabão friccionando por 1 min3;
  • Evitar o toque na parte frontal das máscaras de proteção;
  • Não manusear máscaras de proteção sem as mãos devidamente higienizadas;
  • Não carregar máscaras já utilizadas sem a proteção de invólucros plásticos;
  • Não levar as mãos aos olhos, nariz ou boca sem as mãos devidamente higienizadas; 
  • Higienizar as mãos todas as vezes que vier a tocar nos olhos, nariz ou boca, independente de terem sido desinfetadas antes do toque.

Os procedimentos de higienização devem ser estendidos aos EPIs, sobretudo às máscaras de proteção para as quais os cuidados devem ser redobrados, para evitar possível disseminação do SARS-CoV-2 após o descarte dos equipamentos – por contaminação secundária.

Máscaras faciais domésticas e o risco para a disseminação do vírus

Toda máscara descartável será, neste documento, considerada contaminada, uma vez que a CoViD-19 tem como um de seus fatores de complexidade um número expressivo de portadores assintomáticos, que embora não tenham desenvolvido quadros agudos e nem mesmo leves, são portadores do vírus e podem transmiti-los a outras pessoas.

Foi possível levantar junto à mídia, que a recomendação mais frequente é o descarte das máscaras em sacos plásticos que, devidamente fechados, devem ser destinados ao lixo comum4 5.

De imediato, surgem questionamentos tais como: 

  • Qual a garantia de que o saco plástico com material infectante seguirá íntegro até o local de descarte final?
  • Como tornar seguro o recolhimento de resíduos comuns pelos funcionários das empresas municipais de coleta de lixo?
  • Como assegurar que o grande número de pessoas que vive da coleta informal de resíduos recicláveis não entre em contato com material contaminado e venha a se infectar?

As máscaras, ainda que de uso doméstico, precisam ser manipuladas como RSS – Resíduos Sólidos de Saúde, atendendo à norma regulamentadora RDC 222/2018 da ANVISA6, que dispõe sobre os requisitos de Boas Práticas de Gerenciamento dos Resíduos de Saúde, sejam eles públicos, privados, filantrópicos, civis ou militares, incluindo aqueles que exercem ações de ensino e pesquisa, de acordo com o Capítulo 1, Seções I e II.

Ante a pandemia e disseminação comunitária, quando não é possível detectar o doente responsável pela contaminação, é necessário que o cidadão comum seja orientado no descarte correto desses resíduos, protegendo, além dos trabalhadores de coleta domiciliar, todo cidadão que porventura venha a ter contato com este material.

A RDC 222/2018 classifica esse tipo de resíduo como Classe de Risco 4, incluindo agentes biológicos que representam grande ameaça para o ser humano, implicam em forte risco para quem os manipula e um enorme poder de transmissibilidade de um indivíduo para o outro, não existindo medidas preventivas e de tratamento para esses agentes.

Isto posto, não cabe o descarte das máscaras utilizadas apenas em um saco plástico vedado. É necessário inviabilizar a existência do SARS-CoV-2 antes de dispensar o material para a coleta de resíduos sólidos domiciliares e urbanos. Ou, no caso da não observância dessas diretivas, este tipo de resíduo potencialmente contaminado deve ser descartado adequadamente, como resíduo contaminante afeito aos RSS. 

Questão importante não abordada pela RDC 222/2018, refere-se ao tempo de permanência do SARS-CoV-2 em superfícies como as do saco plástico onde as máscaras foram acondicionadas. Como já apontado acima, estudos detectaram partículas infectantes viáveis por até 24 horas em papelão e de dois a três dias em plástico e até nove dias em superfícies metálicas7. Esses dados apontam o grande risco para quem manuseia esse tipo de resíduo na coleta domiciliar comum.

Dentre as características desta virose, sua capacidade de sobreviver em superfícies inanimadas e seu alto grau de disseminação resultam em grande número de pessoas infectadas. A maioria dessas pessoas não apresenta sintomas porém podem transmitir o coronavírus. 

Devido ao longo tempo de incubação (entre 5 e 20 dias) é imprescindível a adoção dos cuidados e recomendações da ANVISA com as máscaras e demais objetos para proteção individual utilizados por cada um de nós.

As informações e recomendações feitas, simples, acessíveis e cientificamente validadas, precisam ser divulgadas e adotadas pela população para evitar que, mesmo com o isolamento social, o vírus circule por descuido ou descaso no descarte de material de proteção individual. 

Como desinfetar os EPIs?

A análise de 22 estudos revela que os coronavírus humanos (Kampf et al, 2020), como o coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), o coronavírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS) ou o coronavírus humano endêmico (HCoV) podem ser inativados eficientemente por procedimentos de desinfecção das superfícies com métodos caseiros:

  • Etanol, concentração entre 62 e 71% por 1 minuto; 
  • Peróxido de hidrogênio líquido (de 3-6%) entre 1 seg a 30 min; 
  • Hipoclorito de sódio (água sanitária) a 0,1% em 1 min;
  • Sabão desengordurante com ação mecânica de fricção por 1 min. 

Após a adoção desses procedimentos, ainda que restem nos EPIs traços de proteínas ou de RNA desses vírus, eles não representarão riscos de contaminação para as pessoas que entrarem em contato com o material descartado. 

Este documento tem a intenção de servir como base para  discussões mais amplas, profundas e urgentes a respeito desse tema. 

Somente após a adoção dos procedimentos de descontaminação e inativação das possíveis partículas virais é que as máscaras e objetos utilizados para proteção individual poderão ser acondicionados em sacos plásticos, ou de papel, e em seguida descartados nos locais adequados.

Este descarte (repetindo: após terem passado por um dos procedimentos para inativação do SARS-CoV-2 acima descritos) deve ser feito no lixo domiciliar comum – aquele que não se destina à reciclagem, compostagem ou qualquer forma de reaproveitamento ou reutilização. 

Afinal, não é concebível que, ao mesmo tempo que cuidemos da nossa saúde e segurança, ameacemos a saúde e a segurança de outras pessoas ou do meio ambiente através de ações incorretas, inconsequentes e irresponsáveis.

Notas:

  1. Neeltje van Doremalen, Trenton Bushmaker, Dylan H. Morris, Myndi G. Holbrook, Amandine Gamble, Brandi N. Williamson, Azaibi Tamin, Jennifer L. Harcourt, Natalie J. Thornburg, Susan I. Gerber, James O. Lloyd-Smith, Emmie de Wit, Vincent J. Munster. Aerosol and Surface Stability of SARS-CoV-2 as Compared with SARS-CoV-1. New England Journal of Medicine, 2020.
  2. G. Kampf, D. Todt, S. Pfaender & E. Steinmann.  Persistence of coronaviruses on inanimate surfaces and their inactivation with biocidal agentes, Journal of Hospital Infection  104, 2020, pp 246 – 251.
  3. Link de lavagem de mãos: <https://thumbs.gfycat.com/HappygoluckyFormalEuropeanfiresalamander-size_restricted.gif?fbclid=IwAR2RpLzeeRlu0gaJg6n3fe6KE8GWt_kZSj-OY9-s1LMpO4H4htcUjdzMRZM> Acessado em 22/04/2020
  4. https://twitter.com/OperacoesRio//status/1251752388760870913
  5. https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/04/11/descarte-de-mascaras-exige-cuidados-especiais.ghtml
  6. https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/index.php/legislacao/item/resolucao-rdc-n-222-de-28-de-marco-de-2018-comentada
  7. NIH/National Institute of Allergy and Infectious Diseases. From New coronavirus stable for hours on surfaces SARS-CoV-2 stability similar to original SARS vírus. https://www.health.harvard.edu/diseases-and-conditions/preventing-the-spread-of-the-coronavirus. Acessado em 22/04/2020